Alvalade, A ALDEIA QUE VIROU MARCA

Planeado para ser uma aldeia dentro de Lisboa, Alvalade Tornou-se um símbolo urbano onde tradição e modernidade ainda se cruzam.

Enquanto o sol nasce, o bairro de alvalade acorda com um ritmo que não se confunde com o resto da cidade. Os raios de sol atravessam as persianas e os estores com uma lentidão de quem já aprendeu o horário do bairro. As primeiras sombras a aparecerem prelongam-se sobre os passeios largos, o cheio a pão quente escapa das padarias com uma urgência diferente daquela que encontramos nas zonas tuísticas.

Ouvem-se passos, as primeiras conversas, o arrastar de uma velha vassoura à porta de uma mercearia. No centro do bairro, a Avenida da Igreja ainda pertenece a alguns moradores mais antigos que saem cedo e aos trabalhadores de pequenos comércios que preparam o longo dia pela frente. É um despertar discreto, quase coreografado

Em muitas outras cidades, a manhã começa com a pressa dos carros, e o barulho das buzinas. Aqui, começa com pequenas rotinas. Antes de Lisboa se aquecer por completo, Alvalade já está no ponto certo. Um bairro que preserva hábitos que noutros sítios desapareceram.

Os tais comerciantes abrem as lojas com gestos que repetem há anos: levantar a persiana, limpar a entrada, cumprimentar o vizinho. Existe um padrão que, muito provavelmente, não vem nos manuais de urbanismo, mas sim da convivência: reconhecer rostos, saber quem passa, quem mora, quem mudou e quem ficou.

E é aqui, a esta hora que a forte identidade do bairro se torna visível. É aqui que se percebe como a arquitetura e a vida se podem encaixar. Com ruas largas ruas largas, prédios baixos, comércio de proximidade, tudo metido numa escala que favorece encontros e conversas curtas. Uma vida que não se impõe, acontece.

As pessoas que chegam falam. Nada que à primeira vista pareça muito extraordinário, mas é exatamente isso qe importa. Alvalade acorda todos os dias através destes pequenos rituais que seguram o bairro ao que ele foi e ao que continua a ser: um lugar onde a cidade se torna humana antes de ser moderna.

O sonho planeado

 Logo após a Segunda Grande Guerra, a cidade de Lisboa procurava reconstruir-se. A cidade estava em crescimento, mas sem qualquer coerência: bairros espontâneos iam surgindo nas sete colinas, as avendias estendiam-se sem qualquer tipo de desenho unificado ou planificado e a diferença entre o centro histórico e as periferias tornava-se cada vez mais clara. Em Portugal regia o Estado Novo, que tornava o país fechado ao exterior mas desejoso de mostrar sinais de modernização.

Foi assim, neste contexto que, em 1945, o Governo aprovava o Plano de Urbanização de Alvalade, concebico pelo arquiteto e engenheiro João Faria da Costa, então chefe da Repartição de Urbanização. Este plano não era apenas mais um, era sim uma visão futurista sobre como Lisboa poderia crescer com ordem e humanidade, sem perder as suas essências.

Tirando inspiração das famosas Garden Cities inglesas e em vagas da urbanização moderna, Faria da Costa defendia uma cidade que conseguisse, de forma autónoma equilibrar ordem, mas ao mesmo tempo proximidade. Nada de enormes prédios, nada de densidades esmagadoras, nada de zonas residenciais mórbidas e sem vida. Ele queria ruas largas, edifícios com tamanho proporcional à escala humana e um bairro que funcionasse como um ecossistema social.

Desta forma, dividiu o território do bairro em oito células residenciais, seguindo o modelo das “unidades de vizinhança, criado pelo americano Clarence Perry, em 1929, no âmbito do Regional Plan of New York, que então ganhavam força no urbanismo europeu. Tinha um objetivo claríssimo: conseguir que cada uma destas células tivesse um acesso fácil a equipamentos públicos, zonas verdes, comércio de proximidade e espaços comunitários criando, assim, pequenos núcleos capazes de sustentar uma vida quotidiana completa.

Mesmo que a distribuição exata dos equipamentos e espaços variasse, o príncipio era claro e sempre o mesmo: Um bairro não deve, por razão alguma, depender do centro da cidade para viver. Deve sim, ter dentro de si tudo aquilo que se cosideram bases para a convivência.

As plantas revelavam uma ideia inequívoca: a urbanidade não deveria separar, mas sim reunir. Com passeios largos, sombras, espaços verdes entre os edifícios, quarteirões simétricos e equipamentos igualmente distribuídos para evitar algum tipo de desigualdade. Era algo profundamente racional, mas ao mesmo tempo profundamente humano. O Arquiteto e Engenheiro acreditava profundamente numa ideia: que o desenho arquitetónico podia, de facto, moldar relações. Um bairro bem estruturado criava vizinhança, segurança e identidade.

No passar dos anos, ao longo da década de 50, o plano saiu do papel. Construiram-se as primeiras casas ergueram-se os pequenos prédios abriram-se ruas com nomes de escritores e cidades, nasceu o Mercado Norte, que viria a tornar-se o coração do bairro.
Alvalade tornou-se, em poucos anos, a expressão mais clara de um urbanismo que tentava conciliar país e cidade, modernidade e quotidiano.

Hoje, passados quase 80 anos, a maioria das escolhas de Faria da Costa continuam à vista: a escala moderada dos edifícios, os jardins ainda usados, a continuidade das escolas, as praças discretas onde se encontra sombra.
Nada de monumental, nada de grandioso, apenas um bairro pensado como lugar de vida.

O objetivo nunca foi criar uma obra-prima arquitetónica.
Foi criar condições para uma comunidade.

E isso, em grande parte, resultou.

Uma cronologia essencial: do plano de 1945 à identidade contemporânea. O bairro que nasceu como “aldeia” e se tornou uma marca da cidade.

AS DÉCADAS DE OURO

Os anos 50, 60 e 70 foram o grande começo e prosperaram com hábitos. Quando a primeira grande vaga de família se mudou para Alvalade, sentia-se já no bairro vida suficiente para se conseguir compreender, ao ritmo do quotidiano: o abrir e fechar das mercearias as compras feitas a pé, as crianças que desciam para brincar ainda antes do almoço, as conversas que se formavam espontaneamente à porta das lojas. Já era um bairro funcional, mas sobretudo vivido. A ideia estava lá, claro, mas o que marcava era a forma como as pessoas o ocupavam.

Ao longo da primeira década, a de 50, Alvalade ganhou estabilidade. As famílias que se instalavam consolidaram as rotinas, o comércio multiplicava-se num equilíbrio fora do normal: entre a procura e a proximidade. As escolas enchiam-se de miúdos, o mercado fervilhava aos fins de semana e os jardins discretos, mas constantes, tornavam-se extensão da vida doméstica. Era um quotidiano simples, mas sólido. A primeira geração que cresceu ali recorda esses anos como um período de encaixe natural: tudo parecia estar no lugar certo, ao ritmo certo.

Já a década de 60 aprofundou esse sentimento. O bairro, bastante mais maduro, tornava-se assim um dos exemplos mais bem sucedidos daquilo que se pode chamar de  urbanismo vivido.  Apesar do contexto político rígido e controlado do Estado Novo, a vida do dia-a-dia decorria com uma continuidade quase imperturbável: o comércio conhecia os fregueses pelo nome, as famílias permaneciam nos mesmos prédios durante décadas e a vizinhança era constante. Os cafés eram como centros de encontro social, os recreios das escolas eram prolongamentos da rua, os fins de semana orbitavam sempre entre o mercado, as papelarias, os talhos, as padarias e as mercearias.

É Maria, moradora há quase seis décadas, quem traduz esse tempo com a clareza de quem o viveu por dentro: “O prédio tinha seis famílias e todas se conheciam. As portas ficavam quase sempre abertas.” E esta frase diz muito mais do que um estudo sociológico. Comprova que estas décadas não foram apenas de crescimento físico, mas de enraizamento comunitário. Um bairro onde as crianças circulavam entre casas, onde as vizinhas se apoiavam, onde o comércio era extensão da vida familiar e onde essa confiança não era exceção, mas regra.

Nos anos 70, o país mudou profundamente. A revolução dos cravos para além da tão querida liberdade, trouxe novas dinâmicas sociais e um país, mas principalmente uma cidade em transformação. Contudo, Alvalade atravessou este período de transição com serenidade. A vida, embora menos homogénea, mantinha uma coerência difícil de replicar noutros pontos da cidade.

Assim, estas três décadas de 50, 60 e 70 ficaram conhecidas como as “décadas de ouro” de Alvalade. Não porque tudo fosse perfeito, mas porque reuniam algo raro: estabilidade populacional, comércio forte, vida de rua vibrante e uma convivência alimentada pela familiaridade e pelo tempo partilhado. O bairro funcionava como um mecanismo afinado, onde tudo parecia pertencer. Mas esse brilho levanta uma pergunta inevitável:
foram realmente aquelas as décadas de ouro… ou eram apenas décadas em que o bairro vivia em sintonia com o país e com o seu próprio tempo?

Hoje, quando se olha para o presente, para os novos moradores, para as escolas renovadas, para o comércio reinventado e para o equilíbrio entre gerações percebe-se que a vitalidade não desapareceu. Transformou-se. Alvalade soube adaptar-se a uma Lisboa mais rápida, mais diversa, mais complexa, sem perder a sua estrutura essencial: proximidade, convivência e uma escala que continua a favorecer encontros.

Talvez, afinal, o ouro de Alvalade não pertença a um passado fechado,
mas à capacidade de atravessar o tempo.

E isso leva ao que vem a seguir:
as vozes de quem vive o bairro hoje e de quem o mantém vivo, todos os dias.

AS VOZES DO BAIRRO

Cinco histórias, cinco tempos de Alvalade.

Rogério – O Som das Máquinas

Antes de o sol acordar, equanto a avenida de roma ainda dorme, há uma grade metálica que se levanta sempre à mesma hora. No interior, num estreito espaço, onde apenas cabem uma bancada, duas máquinas, prateleiras cheias de solas e um expositor de chaves, Rogério prepara o dia com gestos repetidos: alinha as ferramentas, liga as máquinas, limpa o balcão. O cheiro a cola, couro e metal cortado enche a loja antes de entrarem os primeiros clientes.

Ele, com 52 anos, é brasileiro, do estado de Minas Gerais. Vive em Portugal há precisamente 25 anos. Quando chegou, não começou logo numa loja como esta. “Trabalhei nas obras também”, lembra.; “Quando eu vim,  primeiro foi nas obras.” Foi apenas após uns quantos anos de trabalho duro e pesado em construção que começou a aprender estes ofícios: o de chaveiro, em primeiro, e só depois o de sapateiro. Tudo o que hoje parece um gesto natural como segurar um sapato gasto, avaliar uma sola ou cortar uma chave foi sendo aprendido com tempo.

Há seis, sete meses, mudou-se para esta oficina em Alvalade. Mas o bairro rapidamente deixou de ser apenas morada profissional. O fluxo de pessoas, a maneira como o tratam, o facto de ver caras repetidas fizeram-no perceber que aqui o comércio ainda tem rosto.

Quando lhe perguntam se tem muitos clientes regulares, responde sem hesitar:
“Sempre habituais. Regulares e habituais.” E acrescenta, quase a justificar a confiança que sente: “Por isso que é uma zona grande.”

Nesta pequena loja, a tal “zona grande” passa como uma brisa p Mas o bairro rapidamente deixou de ser apenas morada profissional. O fluxo de pessoas, a maneira como o tratam, o facto de ver caras repetidas fizeram-no perceber que aqui o comércio ainda tem rosto.

Quando lhe perguntam se tem muitos clientes regulares, responde sem hesitar:
“Sempre habituais. Regulares e habituais.”
E acrescenta, quase a justificar a confiança que sente:
“Por isso que é uma zona grande.”

Ela porta todos os dias: : jovens que vêm fazer cópias de chaves do primeiro apartamento, vizinhos mais velhos que trazem os mesmos sapatos de sempre, gente que entra para resolver um problema concreto e acaba a conversar da vida. Rogério atende todos com o mesmo ritmo, com o cuidado e tecnicidade e ao mesmo tempo com atenção humana.

Nota também que está, de facto, a mudar. Não entra pelo caminho das teorias do urbanismo, este fala sobre coisas concretas: mais lojas, mais movimento, mais diversidade de pessoas. “Sim, estou vendo melhorias. Melhorias. Porque abrindo mais espaços no caso é melhor.”

Quando tenta descrever quem entra na loja, não pensa diretamente em segmentos. Pensa primeiro em idades: “Entre 17, 18 anos, 20 e poucos anos, 25.” E logo a seguir: “Pessoas idosas, de 60, 70… Todas dessas.”
Isto é um  retrato simples de um bairro que ainda consegue juntar gerações no mesmo passeio.

Rogério, não é um homem abstrato, e, por isso, não tenta fazer análises poéticas. Diz, de forma simples, o qeu vê: “Em geral. Aqui tem de tudo. Tem farmácia, tem supermercado, tem tudo.”
E resume a relação  que tem com o lugar numa frase que parece curta demais para aquilo que sente: “Para mim é um bom bairro. É um bairro. Gosto porque tem tudo. Restaurantes, pizzarias… Tudo que precisar, aqui perto tem tudo.”

Percebemos que talvez seja isto que o prende aqui. A possibilidade de trabalhar num bairro onde à volta da loja existe uma vida completa: serviços, comércio, pessoas que se conhecem e voltam. Rogério não fala em “sentido de comunidade”, mas vive-o todos os dias, entre um par de sapatos arranjado e uma chave que muda de mãos.

Este negócio, embora não dele, encaixa no desenho maior de Alvalade: um bairro onde o comércio de rua ainda suporta relações, e onde um chaveiro-sapateiro recém-chegado consegue, em meia dúzia de meses, criar rotina com quem passa pela porta.

“Para mim é um bom bairro… gosto porque tem tudo.”

Rogério — Sapateiro no bairro de Alvalade

Joaquim- A Banca Que Viu Três Gerações Crescer

O dia ainda mal começou e a banca de Joaquim já está pronta, como se alguém tivesse esticado um nível invisível sobre cada fila de fruta. Os abacaxis pendem alinhados, as mangas repousam por gradação de cor e os frutos secos brilham dentro de frascos limpos. Em Alvalade, há bancas que parecem improvisadas; a de Joaquim nunca é uma delas.

Está naquele mercado há cinquenta anos. Estou cá há 50 anos”, confirma, sem orgulho forçado, apenas a verdade dita por quem mediu metade da vida em caixas de fruta. A banca é minha, toda ela.

O mercado é o seu lugar antes de ser o seu trabalho. Herdou o ofício da família: em Moçambique, o pai geria um pequeno supermercado e em Lisboa, foi o recomeço, banca a banca, cliente a cliente. Joaquim cresceu entre cheiros, pesos e calibragens. Ainda hoje identifica uma boa manga pelo toque e um bom abacaxi pelo cheiro.

Aponta para uns que pendem acima da cabeça e explica: Esses custam-me 4 euros e 50 no mercado abastecedor. São de via aérea. Há outros mais baratos, mas não trago. O cliente leva uma vez e não quer outra coisa.

 

Banca do Senhor Joaquim no Mercado de Alvalade

Há uma honestidade crua no modo como fala da fruta. Joaquim aprendeu desde cedo que vender bem não é vender muito, é vender o certo e com verdade. É por isso que tem clientes fiéis, alguns de três gerações.
E é por isso que, quando um cliente se mudou para o Porto, a banca continuou a atravessar o país.

“Um senhor que a filha se mudou para o Porto liga-me pedindo caju. Mandei três ou quatro vezes pelo correio. Ele diz que não arranja igual ao daqui.”

Sorri ao contar, não de vaidade, mas de reconhecimento. Aquela banca é mais do que comércio: é ligação. E é também responsabilidade.Mas Joaquim sabe que o mercado de hoje não é o de há trinta ou quarenta anos. É direto a dizê-lo: “As pessoas precisam de alguma coisa e o mercado está fechado.”

Os horários, explica, afastam sobretudo os casais que trabalham até tarde. A vida mudou, o ritmo mudou, os hábitos pelo mesmo caminho foram. Entre as bancas, há espaços vazios que antes não existiam. E ele sente isso na.

Ainda assim, há algo que não mudou: o compromisso. Sente-o na forma como ajeita cada cacho, como endireita uma caixa, como observa discretamente quem passa. Joaquim não tem pressa. Tem método. E tem memória.

Entre o mercado abastecedor, a banca, e os pequenos rituais que repete desde miúdo, há uma coisa que para si é certa: “Apostamos na qualidade. O cliente percebe logo a diferença.”

Alvalade transformou-se com novos cafés, novas lojas, novos moradores. Mas a banca de Joaquim continua a ser o que sempre foi: um ponto de equilíbrio.
Um pedaço do bairro que resiste sem fazer barulho, só a fazer bem.

“Já tenho clientes de terceira geração.”

Joaquim — Dono de uma banca no Mercado de Alvalade

José - O Comércio Antigo Que Resiste

 

A porta abre-se com um ding-ding breve, o som que há décadas anuncia entrada na mercearia da família Ferreira. Lá dentro, prateleiras antigas misturam garrafas, frutas, charcutaria e produtos que fazem parte do quotidiano de Alvalade desde 1963: o ano em que o negócio começou.

José Ferreira, hoje sócio-gerente, cresceu entre aquele balcão e aquelas caixas de madeira. Fala de forma pausada, objetiva, como quem conhece demasiado bem o terreno que pisa. O comércio existe desde 1963, na família. Quase tudo mudou em redor, mas a mercearia continua ali, firme, mesmo enquanto o bairro se transforma à volta.

Perguntamo-lhe como tem sentido a evolução do negócio e do próprio bairro. Ele não hesitou: É preciso ver que a maior parte do comércio antigo do bairro, já somos poucos.” A constatação não é amarga, é factual. Ao longo das décadas, muitas lojas históricas foram fechando ou mudando de dono. O que antes era continuidade tornou-se substituição. E José sabe porquê: As pessoas têm muitas características, vão vendendo e vão passando as lojas derivadas da idade. Porque se não têm quem dê seguimento… provavelmente poderá acontecer o mesmo aqui. É uma frase pesada, mas honesta. O futuro não está garantido, nem para ele nem para nenhum dos que restaram.

Ainda assim, José reconhece que Alvalade tem algo que a maior parte de Lisboa já perdeu: O bairro mantém a característica do bairro, o que já é muito bom. Mas essa identidade tem sido posta à prova. O boom da restauração, os novos negócios e a fama recente do bairro mudaram o equilíbrio:

Houve uma alteração muito grande em termos de negócio… porque realmente também há um boom, a nível de hoje em dia do marketing. O bairro de Alvalade criou muita fama em termos de restauração. E é isso que faz com que o mercado antigo fique um bocado descaracterizado.

O diagnóstico é claro: cada nova abertura retira espaço ao comércio tradicional; cada mudança aproxima o bairro da lógica da cidade moderna e afasta-o da sua identidade original. Mesmo assim, José mantém a porta aberta, literal e simbolicamente.

Perguntamo-lhe pelos clientes antigos. O rosto suaviza-se: Vamos mantendo alguns clientes de há anos. Alguns ficam, outros não… mas vamos mantendo alguns clientes antigos…”

É nisso que o negócio sobrevive: não no volume, mas no vínculo.
E é também nisso que José encontra sentido, na persistência silenciosa de quem mantém vivo um pedaço do bairro por pura continuidade familiar.

A mercearia é pequena, mas contém dentro dela um retrato fiel da própria história de Alvalade: um bairro que se moderniza depressa, mas onde alguns lugares antigos resistem porque representam mais do que comércio. Representam passado, relação e memória.José não o diz assim. Não precisa. Está tudo no modo como arruma as garrafas, no gesto com que pesa um saco de fruta, na porta que continua a abrir-se todos os dias desde 1963. E enquanto houver clientes, alguns novos, outros de sempre, a mercearia vive. Como ele próprio disse, com uma simplicidade que resume décadas: Enquanto houver conversa, isto vive.

“O bairro mantém a característica de bairro, o que já é muito bom.”

José Ferreira — Dono de uma mercearia em Alvalade

Maria- O Bairro Visto da Mesma Janela Há Meio Século

 

No terceiro andar de um prédio da Avenida da Igreja, Maria Pereira de Lima olha para baixo como quem lê um livro que conhece de cor. Tem 59 anos e vive em Alvalade há 59. “Desde sempre”, diz, com a simplicidade de quem não sabe imaginar-se noutro lugar.

Cresceu primeiro no bairro junto ao Pote de Água, ao pé dos Bombeiros e da Escola Padre António Vieira, e mudou-se para a avenida quando tinha oito ou nove anos. Foi aqui que viveu tudo: a infância, a adolescência, a idade adulta. E é aqui que ainda respira.

Quando descreve o Alvalade de criança, não hesita:

“Era um bairro muito simpático, quase familiar.”

Era um bairro reconhecível, íntimo, previsível.
As lojas tinham nome, as caras tinham história, as portas ficavam quase sempre abertas.
Toda a gente se conhecia”, diz. “O merceeiro, a papelaria, toda a gente.

A Avenida da Igreja era o centro dessa vida quotidiana.
No prédio, seis famílias, todas conhecidas umas das outras.
As crianças subiam e desciam as escadas como se fossem ruas interiores do bairro: ora jogavam cá em baixo na avenida, ora voltavam ao prédio do Pote de Água, que funcionava como segundo lar.

Pergunto-lhe pelas memórias mais nítidas. O olhar muda como se abrisse uma gaveta que não mexe há anos: “Tinha vários amigos… e tinha uma especial, a neta da dona da papelaria debaixo de casa.” Passava horas lá dentro, especialmente no Natal. Ajudava a fazer embrulhos, atendia clientes pequenos, mergulhava naquele cheiro a papel, tinta e fitas coloridas.

Havia ainda o cheiro da casa da avó: bolos, calor, tardes inteiras que para Maria definem aquilo que chama de memória olfativa do bairro“Era um cheiro muito específico. Era da casa da minha avó… e também vivia aqui na Avenida da Igreja.”

A infância de Maria não é apenas nostalgia, é sociologia.
Ela assistiu ao desaparecimento progressivo do comércio de bairro, porta a porta, década a década: “Perdeu-se completamente. Agora só existe a mercearia.”

A mercearia que hoje se chama José Ferreira era, no seu tempo, “a casa do Sr. Acácio”.
O atual merceeiro é o filho do antigo, o mesmo com quem ela brincava em pequena. É a única continuidade visível de todo um ecossistema comercial que desapareceu: O resto não há. Nenhuma loja do meu tempo existe já.

A Mariazinha permanece, mas com donos diferentes. O Carcassonne mantém-se, mas já passou por várias mãos. O bairro de infância, esse, ficou nos álbuns. Mas Maria não fala de Alvalade com amargura. Fala com lucidez.O bairro envelheceu, e depois rejuveneceu. Diz que antes havia sobretudo pessoas mais velhas; agora, na sua escada, “é só gente nova”. Casais jovens, carrinhos de bebé, bicicletas. Para ela, isso é um bom sinal: “Acho que é agradável para os jovens viverem aqui. A avenida é muito simpática, das poucas que há em Lisboa, passeios largos, árvores, escolas por todo o lado.”

Maria estudou em três delas: Luso-Britânico, Eugénio dos Santos e Rainha Dona Leonor.
Todas a pé. Todas parte da mesma geografia afetiva que descreve como “um bairro muito completo”.

Quando a questionamos sobre o que mudou mais, a resposta é imediata: “O ambiente e o comércio. Está totalmente diferente.” O bairro, diz, ficou mais impessoal. Menos cafés de esquina, menos esplanadas, menos conversas espontâneas. “Antes havia cafés em todos os quarteirões. Agora é só restaurantes… muito impessoal.”

E ainda assim, quando pensa no futuro, não pensa em sair. “Eu tinha dificuldade em escolher outro bairro em Lisboa. Este bairro tem tudo. É simpático, bem estruturado, não precisamos de sair daqui para nada.”

E que podem os outros bairros aprender com Alvalade?

Ela hesita, pensa, pondera, mede as palavras:

“O comércio faz os bairros.
Sem comércio… são só dormitórios.”

É isso que teme perder. Não uma loja específica, mas a ideia de bairro onde as vidas se cruzam sem marcação, sem transações apressadas, sem a frieza de quem vive apenas de passagem.

Quando lhe perguntamos por memórias marcantes, não consegue escolher:

“Houve tantas… cinquenta e tal anos é muito tempo.”

Mas há uma coisa que a marca, e pela negativa:

“As lojas a fecharem e a virem outras.”

No final, perguntamos-lhe como imagina Alvalade dentro de vinte anos.
Maria sorri, com leveza:

“Olhe… se Deus quiser, eu a passear com muitos netos.”

É assim que vê o bairro: um lugar onde a vida continua, onde o tempo corre mas não atropela, onde ainda há sombras, árvores, escolas e caminhos que se percorrem devagar. Alvalade respira.

E Maria, que o viu nascer para a modernidade, continua a ser uma das vozes que o fazem permanecer vivo.

 

“A Avenida da Igreja é uma avenida muito simpática, das poucas que há em Lisboa.”

Maria Pereira de Lima — Moradora do bairro há 60 anos

Joana & Miguel — O Bairro Que Lhes Devolveu o Tempo

 

Há fins de tarde em que a Avenida da Igreja parece uma avenida feita só para famílias. Carrinhos de bebé, sacos de compras do mercado, pessoas que se cumprimentam com o natural de quem já faz parte do bairro. Entre estas rotinas encaixam-se Joana e Miguel, 32 e 34 anos, que chegaram há dois anos depois de uma vida inteira na Lapa, uma mudança que começou quase como brincadeira, antes de se tornar uma decisão definitiva.

“Estávamos a tomar café e eu disse: ‘E se fôssemos viver para Alvalade?’”, recorda Joana.
O Miguel riu-se, mas a frase ficou.

Na Lapa viviam num T1 pequeno, num bairro bonito mas cada vez mais turístico. “Já não tinha vida”, diz Miguel. “Os vizinhos mudavam todos os meses, os cafés eram para turistas. Era bonito, mas era uma beleza distante.” Quando começaram a visitar Alvalade, perceberam que havia ali uma energia diferente: árvores, silêncio a certas horas, comércio vivo, vizinhança que não se troca todos os meses. “Parecia um bairro dentro da cidade”, resume.

O primeiro impacto foi humano. No dia em que se mudaram, o vizinho do lado bateu à porta com pão quente para lhes dar as boas-vindas. Joana conta isto com um sorriso que não é anedota: é realidade.
“Aqui toda a gente fala. Parece cliché, mas é mesmo assim.”

“O vizinho trouxe-nos pão no primeiro dia.”

Há rotinas que mudaram completamente. Deixaram de usar carro para quase tudo. O mercado, o pediatra e o jardim ficam todos a poucos minutos a pé. “Aqui o dia tem mais horas”, diz Joana. Miguel explica o mesmo de forma diferente:

“O ritmo não é lento, talvez humano.”

Na rua, o barulho é outro: o abrir das persianas, a conversa dos vizinhos, o bater leve das folhas das árvores. “É um bairro que respira”, descreve Miguel.

Antes de viverem aqui, imaginavam Alvalade como um bairro “velho”, estático, demasiado calmo. Mas a imagem mudou depressa. Há cafés novos, lojas independentes, muitos moradores jovens. “É clássico e moderno ao mesmo tempo”, diz Miguel. E Joana acrescenta: “Há modernização, mas não há descaracterização. Alvalade tem uma identidade muito forte.”

“Há modernização, mas não há descaracterização.”

Do ponto de vista económico, a mudança não foi fácil. A renda: 1.500 euros por um T2 obrigou-os a pensar duas vezes. “Mas aqui o preço faz sentido”, diz Miguel. “Pagas por qualidade de vida, não por estatuto.”

O casal escolheu não aparecer em fotografia nem em vídeo na reportagem. Querem preservar a privacidade, sobretudo desde que o bebé nasceu. Ainda assim, aceitaram falar porque sentem que o bairro lhes devolveu uma dimensão da vida que achavam perdida.

“Um bairro que te devolve o tempo.” — diz Joana.

Miguel resume em quatro palavras que parecem simples, mas carregam tudo o que encontraram desde que chegaram:

“Lisboa, como devia ser.”

A CIDADE QUE CHEGOU

Quando o fim da tarde assenta sobre Lisboa, percebe-se melhor o contraste entre Alvalade e o resto da cidade.
Enquanto o Marquês se enche de buzinas daqueles que se deslocam para casa, Alfama se estreita com turistas e o Oriente reflete o brilho impaciente dos prédios de vidro, aqui o dia desacelera.
Há passos, conversas, portas que fecham à mesma hora, uma coreografia que parece imune ao ritmo acelerado da capital.

Durante as últimas duas décadas, Lisboa transformou-se profundamente.
O turismo cresceu, a pressão imobiliária intensificou-se e a cidade tornou-se destino, investimento, produto.
Em muitos bairros, a mudança foi sinónimo de substituição: moradores que saíram, comércio que desapareceu, rendas que deixaram de ser compatíveis com o quotidiano.

Alvalade não ficou de fora, mas resistiu de forma diferente.
As rendas aumentaram, sim, acompanhando a tendência geral da cidade, e hoje um T2 ultrapassa facilmente valores que durante muito tempo pareceram excecionais.
Ainda assim, o bairro continua a atrair pessoas que procuram não apenas casa, mas um modo de vida.

Miguel, recém-chegado da Lapa, descreve esse sentimento com clareza: “Aqui temos tudo, e temos tempo. O valor está nisso.”

 

Essa perceção, repetida por muitos moradores, ajuda a explicar porque é que Alvalade continua a ser um dos poucos territórios urbanos onde o novo não expulsou completamente o antigo.

Um bairro que muda, mas não rompe

A transformação está à vista: cafés recentes ao lado de pastelarias históricas, agências  de Branding instaladas em antigas oficinas, novos moradores a juntarem-se a famílias que ali vivem há décadas.
Mas, ao contrário de outros bairros da cidade, a mudança aqui não ocorreu por substituição total: ocorreu por camadas.

Depois - Honest Greens
Antes - Nova Lisboa

Antigo Nova Lisboa, que hpje é um Honest Greens

O Mercado de Alvalade ilustra essa convivência.
Entre bancas com décadas de história surgiram negócios mais recentes.
Joaquim, que ali trabalha há meio século, descreve a mudança com pragmatismo:

“As pessoas compram onde é à mão. Nós vamos sobrevivendo porque apostamos na qualidade.”

A frase resume bem o mecanismo que mantém o bairro coeso: novos hábitos convivem com rotinas antigas, e nenhuma das partes precisa de eliminar a outra para existir.

Talvez possamos chamar a isto de resiliência urbana, a capacidade de um território se adaptar sem perder forma nem identidade.
E parte dessa resiliência nasce do plano original de Faria da Costa: comércio distribuído ao longo das ruas, equipamentos próximos, diversidade tipológica e uma escala que favorece deslocações a pé.
Muito antes de se falar em “cidade de quinze minutos”, o bairro já funcionava como tal.

Pressões e incertezas

Ainda assim, o equilíbrio é frágil. Há pressão turística, menor do que nos bairros históricos, mas crescente. Há aumento da procura externa, e algumas lojas tradicionais já cederam o lugar a marcas mais padronizadas. Há também o risco, repetido por moradores mais antigos, de que o bairro se torne demasiado caro para quem o fez viver até aqui.

Joana sintetiza esse receio: “O importante é não perder o espírito. Aqui, quando abre um sítio novo, os velhos ainda entram, e isso é raro.” É esse gesto simples de entrar, reconhecer e ser reconhecido que hoje funciona como última fronteira contra a descaracterização.

 

Entre o passado e o futuro

Num mundo urbano cada vez mais polarizado entre o luxo e o abandono, Alvalade oferece um meio-termo quase milagroso. Cresce, mas cresce de dentro. E os novos negócios, quando vingam, aprendem o dialeto do bairro: um cartaz escrito à mão, uma planta à janela, um “bom dia” à porta.
Pequenos sinais de pertença que valem mais do que qualquer rebranding.

A Câmara de Lisboa tem promovido varias políticas numa tentava de copiar a fórmula: revitalizar comércio, limitar alojamento local, incentivar habitação familiar. Mas nenhuma estratégia conseguiu reproduzir a alquimia social de Alvalade. Urbanistas e sociólogos descrevem esta dimensão como parte da identidade cultural e quotidiana do bairro, algo que não se planeia, vive-se. Alvalade é, no fundo, um bairro-ponte: uma transição viva entre a Lisboa tradicional e a Lisboa moderna, uma aldeia com Wi-Fi.

A HARMONIA POSSÍVEL

À medida que a noite cai, Alvalade muda de tom.As persianas descem devagar, as varandas acendem-se com luz quente e o cheiro do jantar espalha-se pelo ar como um ritual antigo. Nas entradas dos prédios, o som das chaves metálico e ritmado ecoa. Marcando o fim do dia sem pressa. É uma coreografia discreta, que só existe onde ainda há tempo para reparar nos gestos.

Perto da Igreja de São João de Brito, um grupo de idosos conversa num banco. Mais à frente, dois adolescentes partilham auscultadores. Entre gerações tão diferentes, não há choque, há continuidade.
“Sempre gostei de viver aqui”, diz Maria Pereira de Lima, quase sessenta anos depois de chegar ao bairro. A frase é simples, mas descreve aquilo que as estatísticas não captam: a permanência como forma de pertença.

Lá em baixo, as ruas estão mais vazias, mas não desertas. Alguns cafés já fecharam, outros resistem com meia dúzia de mesas ocupadas. O mercado, encerrado desde o início da tarde, permanece em silêncio, mas continua presente na memória do bairro: nos sacos cheios que sobem as escadas, nas frutas ainda em cima da banca da cozinha, no peixe que foi o almoço e será o jantar de amanhã. Alvalade não vive do passado, vive de rotinas que atravessam o dia e regressam todos os dias.

O traço de João Faria da Costa continua a fazer um trabalho quase invisível.
A malha regular, as ruas largas, os prédios de escala humana e os espaços verdes intercalados desenharam, nos anos 40, um bairro pensado para ser vivido a pé, com serviços, comércio e equipamentos públicos à distância de poucos minutos.
Hoje fala-se em “cidade de quinze minutos”. Aqui, essa lógica existe desde o início, mesmo sem o nome.

Talvez por isso tradição e modernidade convivam aqui sem estranheza.
Um carro elétrico estaciona sob uma fachada de 1950. Uma loja de tecnologia ocupa o rés-do-chão onde antes houve uma papelaria. Uma mercearia antiga resiste ao lado de um restaurante moderno. O bairro muda, mas não se apaga. Vai-se ajustando, somando camadas em vez de as substituir por completo.

Quem chegou há pouco tempo, como Joana e Miguel, vindos da Lapa em busca de mais tempo e menos trânsito, descreve Alvalade como “um lugar onde ainda se respira”.
Não respiram saudade, respiram equilíbrio: poder viver num sítio onde há árvores, comércio de rua, escolas, cafés, e onde o dia não depende sempre do carro.

Lisboa, como tantas capitais europeias, procura ser moderna sem perder identidade.
Alvalade mostra que essa modernidade pode ser silenciosa: não vive de grandes slogans, mas de hábitos pequenos como dizer à porta de casa, conhecer o nome do merceeiro, voltar ao mesmo mercado todas as semanas.
Não é uma resistência romântica ao tempo; é uma forma de o organizar.

Quando a noite avança, o bairro regressa ao seu sossego inicial.
As janelas fecham-se devagar, as conversas perdem volume, só fica o rumor distante da cidade e o movimento das árvores ao vento.
É um fim de dia banal, e é precisamente nessa banalidade que está a força de Alvalade.

Aqui, o tempo não é apenas aquilo que se perde: é aquilo que se partilha.
E, enquanto isso acontecer, o bairro continuará a ser aquilo que sempre quis ser:
um pedaço de cidade que não esquece que, antes de tudo, é casa.

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